"Minha mãe nunca deixou meus pés dormirem descobertos; dizia que dava 'friagem' e era gripe na certa.Com essa teoria, preencheu minhas noites de infância com o pontualíssimo ritual do puxa- cobertor, sempre seguido de beijo e de 'dorme com Deus'.Meu pai andava com foto minha, entre outras, na carteira.Puxava a qualquer hora, em todo canto, até mesmo em fila de banco, e dizia:' Tá vendo essa aqui?É minha menina'.
Minha vida esteve repleta de noites serenas, nubladas, algumas, mas tantas cobertas de estrelas...
Tantas vezes, tive que limpar meu rosto de beijos de boquinhas lambuzadas.Tantos cadernos com rabiscos: casinhas, flores e esboços de carinhas com seta indicando:mamãe e eu.Coisas tão doces quanto a gemada que a mãe fazia, quando a gripe, que é matreira, dava jeito de encontrar o pé da gente no meio das cobertas, noite adentro.
Tantas coisas tão simples e belas, e eu jamais me permiti amá-las da maneira que faziam por merecer.Tantas vezes desprezei o humilde amor humano numa ânsia fantasiosa de grandeza, quase insana, para alguém tão pequena.Incapaz sequer de perceber que o presente também é divino, confundindo virtude e vaidade, ansiedade com esperança, lançando-se em um abismo estre aquilo que abandona, e que, distante, ainda não alcança...
Ao Deus que cuida de mim, eu peço que ative meus olhos, que sempre pensei estarem abertos, pois meus pés estão descobertos e chegaram a resfriar o mais fundo do meu coração.Não sei se haverá mel de abelhas que volte a adoçar minha vida.Talvez chá de alho, forte, com limão, que expulse o vírus da vaidade, dando lugar ao singelo amor humano neste meu coração.
O amor que sabe ralhar e dar palmadas, mas que é maior do que a zanga, e prevalece.
Puxa por colo de novo, afaga e esquece, pequena chama que jamais se apaga.Esse que sabe correr a janela, à toa, ou somente para esperar papai retornar...Que colhe flores de um jardim qualquer e põe para enfeitar a casa.Que espera a primeira estrela para fazer-lhe um desejo.E não sai de casa sem dar um beijo ou dedicar um doce sentimento até mesmo aos seres invisíveis que também habitam nela.Que converte, enfim, em beleza, o viver simples de cada momento...
(Poesia de Lúcia Helena Galvão Arruda, com pequenas adaptações)
Ana, minha mãe biológica, que me pôs neste mundo, obrigada por nunca me esquecer apesar da distância e do destino.